Artistas e bandas revolucionários existiram em vários momentos do mercado fonográfico brasileiro, mas poucos conseguiram um sucesso tão gigantesco e inesperado quanto os Secos & Molhados. Na primeira metade da década de 1970, o mascarado e ousado trio de MPB/rock, formado por Ney Matogrosso (vocal), João Ricardo (violão e principal compositor) e Gérson Conrad (violão) tomou o Brasil de Norte a Sul com “Secos & Molhados”, o antológico disco de estreia que comemora 50 anos em 2023 com a mesma relevância da época de lançamento.
Apresentado ao público em agosto de 1973, em três meses, o LP vendeu 300 mil cópias, chegando a marca de um milhão. Com hits como “O Vira”, “Sangue Latino”, “Fala”, “Assim Assado” entre outros, e apresentações coloridas e animadas, o S&M bateu “pesos pesados” das vendas da época, desbancando, inclusive, o “Rei” Roberto Carlos, que pela primeira vez se viu superado nas paradas de sucesso por um grupo brasileiro.
5º melhor álbum brasileiro de todos os tempos
O número impressionante de cópias vendidas é apenas um “detalhe” em relação à qualidade artística e as consequentes marcas profundas que esse fenômeno causou na cultura brasileira em geral. Além de apresentar ao mundo o brilhante Ney Matogrosso, é comum a aparição em listas sobre os maiores discos da música nacional. A Revista Rolling Stone, em 2007, colocou a estreia dos Secos & Molhados em 5º lugar, à frente de eternos clássicos de Jorge Ben Jor, Rita Lee, Milton Nascimento, Cartola e Caetano Veloso.
Secos & Molhados: Início no underground
Ser uma banda formada no underground paulista, com visual andrógino, maquiagens no rosto, roupas repletas de purpurina, muita pele à mostra, atitude teatral e um requebrante vocalista de voz incomum, fazia o S&M desafiar os padrões vigentes no Brasil nos primeiros anos da década de 1970. Mas trabalho, sorte e talento descomunal colocaram os Secos & Molhados para além do público esperado, ao cativar crianças e mulheres.
Já com Ney nos vocais durante os shows no bar/restaurante alternativo Casa de Badalação & Tédio, a banda impressionou todos, inclusive o empresário Moracy do Val, que resolveu apresentar o trabalho dos rapazes para as gravadoras. A brasileira Continental entrou no páreo e contratou o grupo, mesmo sem nenhuma confiança que aquela turma de hippies passaria perto do estrelato. Entre maio e junho de 1973, as 13 canções que integravam o LP foram gravadas, com o lançamento ocorrido em agosto, tendo apenas míseras 1,5 mil cópias distribuídas.
Estreia dos Secos & Molhados: pérola musical
A pura pérola musical brasileira está presente nos 30 minutos e 54 segundos do disco. O som é a mais saborosa mistura de folk, blues, glam e rock progressivo combinados com o vocal poderoso de Ney. Algumas das letras eram tiradas de poemas de Vinicius de Moraes (“Rosa de Hiroshima”), Cassiano Ricardo (“Prece Cósmica” e “As Andorinhas”), Manuel Bandeira (“Rondó do Capitão”) e João Apolinário (“Amor” e “Primavera nos Dentes”), este último jornalista, poeta e pai de João Ricardo.
A capa do disco
Os quatro cabeludos de rostos pintados, as cabeças “decepadas” servidas em um banquete repleto de “secos e molhados”, em um clima medieval e sombrio: essa é a imagem que ilustra a capa do disco de estreia, de autoria do fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues, e que provavelmente ajudou a tornar o grupo um sucesso popular, uma vez que as capas eram usadas pelas gravadoras para apresentar o artista aos frequentadores de lojas de discos.
A arte do álbum – que conta também com o baterista argentino Marcelo Frias – resume de modo firme e certeiro a estética da banda e foi reconhecida por sua importância diversas vezes ao longo dos anos. A Folha de S. Paulo a elegeu como a melhor capa de todos os tempos, em 2001, e os Titãs a reproduziram no clipe de “Eu não aguento”.
Impacto dos Secos & Molhados no Fantástico
Durante a divulgação do disco, os Secos & Molhados – nome tirado por João Ricardo da placa de um armazém durante uma viagem a Ubatuba – conseguiram uma vaga no clipe de abertura do dominical Fantástico, da Rede Globo. Uma das principais atrações da estreia do novo projeto global, o ainda desconhecido trio causou grande impacto entre os telespectadores, que ficaram hipnotizados por aquela estética absolutamente extravagante e as letras curiosas sobre sacis e fadas.
O auge no Maracanãzinho
Os Secos & Molhados ganharam o Brasil. Na TV, rádios e lojas de discos, eles eram absolutos. O ápice aconteceu com a apresentação no Maracanãzinho, em 23 de fevereiro de 1974. Não há números exatos, mas tudo indica que o lendário show colocou um público de 30 mil pessoas no ginásio, restando o triplo de fãs do lado de fora.
Brigas e o fim da formação clássica
Mas nem tudo eram flores, e durante a gravação do segundo álbum, “Secos & Molhados II”, o clima já havia azedado, com brigas entre os integrantes. Ney e Conrad resolveram sair e João prosseguiu com outros integrantes, porém sem jamais chegar perto do brilho inicial.
A influência dos Secos & Molhados na música brasileira
O pacote completo é o que faz os Secos & Molhados serem lembrados até hoje, mesmo após 50 anos. É o que diz o jornalista e crítico musical Luiz Felipe Carneiro, do canal Alta Fidelidade. “É uma influência que vai além da música, [é] comportamental também, ainda no sentido de outros artistas sacarem que poderiam fazer shows em ginásios, para grandes multidões”, afirma.
Luiz Felipe faz uma relação entre os Secos & Molhados e Mamonas Assassinas, que surgiu na década de 1990 e estourou de forma muito parecida, caindo no gosto “do netinho ao vovô”, com letras sarcásticas e apresentações divertidas. “Vejo como uma influência de costumes também”, ressalta.
Ney Matogrosso: o destaque
Ele destaca, também, a figura de Ney Matogrosso, que fez uma carreira solo de extrema relevância nas décadas seguintes à saída dos S&M e que ajudou a catapultar a carreira de outros artistas, como a do Barão Vermelho, de quem gravou “Pro Dia Nascer Feliz” ainda no início do grupo liderado por Cazuza. “Ele está em todas. Canta Cartola, Skank e Herivelto Martins. Ele é influenciado e influencia muita gente”, aponta o crítico musical.
Ficha técnica – Secos & Molhados
Continental/Warner Music
Gravado: Estúdios Prova, em São Paulo, entre maio e junho/73
Produção: Moracy do Val
Músicos convidados: Marcelo Frias, Zé Rodrix, Sergio Rosadas, John Flavin, Willy Verdaguer e Emílio Carrera.
Lado A
- Sangue Latino (João Ricardo/Paulinho Mendonça)
- O Vira (João Ricardo/Luhli)
- O Patrão Nosso de Cada Dia (João Ricardo)
- Amor (João Ricardo/João Apolinário)
- Primavera nos Dentes (João Ricardo/João Apolinário)
Lado B
- Assim Assado (João Ricardo)
- Mulher Barriguda (João Ricardo/Solano Trindade)
- El Rey (Gérson Conrad/João Ricardo)
- Rosa de Hiroshima (Gérson Conrad/Vinícius de Moraes)
- Prece Cósmica (João Ricardo/Cassiano Ricardo)
- Rondó do Capitão (João Ricardo/Manuel Bandeira)
- As Andorinhas (João Ricardo/Cassiano Ricardo)
- Fala (João Ricardo/Luhli)