Raí, três letras nomeiam o menino de Ribeirão Preto, jogador de futebol e um homem que conquistou o mundo. Criado na categoria de base do Botafogo de Ribeirão Preto, passou pela Ponte Preta, tornou-se ídolo do São Paulo, conquistou a Copa do Mundo com a seleção brasileira em 1994, e no Paris Saint Germain, começou uma ligação com a França que dura até os dias de hoje.
Irmão caçula do jogador e médico Sócrates (ídolo do Corinthians), Raí conviveu com o esporte desde pequeno e aprendeu com os pais o valor da educação. Indo além do esporte, ele se dedica à cultura e à educação. E, ainda enquanto jogador, chegou a cursar História e Educação Física, mas não concluiu. Foi após “pendurar as chuteiras” que passou a se dedicar mais aos estudos, como recentemente no mestrado em Ciências Políticas na Sciences Po, em Paris.
Com a visão de que a educação tem um poder transformador, criou, ao lado do também ex-jogador Leonardo, a Gol de Letra, uma fundação que oferece educação através do esporte, cultura e formação profissional.
Em entrevista exclusiva à Revista de Bordo da Voepass, Raí falou sobre sua carreira no futebol, seus projetos e o atual cenário do futebol brasileiro. Confira!
Como foi seu início no futebol?
Raí: Sou o sexto filho de uma família de seis, muito esportistas, de alguma forma, o esporte sempre fez parte da minha vida. No entanto, nunca pensei em ser profissional, e pouco a pouco comecei a perceber, a ver que eu tinha um talento diferenciado dentro de casa, na escola, na rua. Mas a decisão de me tornar profissional, foi dada ao acaso. Eu tinha 17 anos (jogava na base do Botafogo de Ribeirão Preto desde os 15), minha namorada que também era adolescente engravidou, a gente se gostava, decidiu ficar junto. Foi aí que comecei a levar o futebol a sério, como um pai de família precoce, foi esse acaso que fez com que eu pegasse esse talento que já sabia que tinha e pensasse em transformar em uma profissão.
A carreira do seu irmão Sócrates te influenciou?
Raí: Me influenciou a ser torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto, a acompanhar ainda mais o futebol, ele não chegou a ser decisivo na minha escolha de ser profissional, mas para me apaixonar pelo futebol sim. Eu ia ver ele treinar e jogar. Ele sempre foi uma referência para mim pela admiração que eu tinha, pelo irmão e pela pessoa que ele é, mas também pelo jogador, pelo craque que era. Também acho que isso de observá-lo, inconscientemente, influenciou meu estilo de jogo.
Havia alguma pressão por ser irmão de Sócrates?
Raí: Muita pressão, mais do que eu imaginava. Quando eu fiz meu teste para entrar no Botafogo (de Ribeirão Preto), pedi para o meu amigo, que me levou, não contar que eu era irmão do Sócrates, para não chamar atenção. Passei no teste e logo depois as pessoas já estavam sabendo. Eu jogava muito pelo prazer de jogar, pela brincadeira, por gostar da competição também, mas quando começou essa comparação e pressão, eu não tinha o direito de ser um jogador médio. Então virou um peso para mim, eu ia jogar no interior e as pessoas falavam “o irmão do Sócrates vai jogar”, “será que ele é bom?”, “será que é igual?”, e era uma comparação injusta, porque ele estava no auge e eu começando, então cheguei a pensar em parar de jogar por causa dessa pressão. Isso acabou virando um desafio para mim, um objetivo, falei: vou provar para as pessoas que tenho um valor, não quero ser nem melhor, nem pior, vou fazer o máximo que puder, mas provar para as pessoas que independentemente dessa pressão, vou conseguir superar. A primeira meta da minha carreira era que as pessoas me aceitassem como eu sou, independentemente de ser irmão do Sócrates ou não.
Qual o momento mais emblemático da sua carreira?
Raí: Sem dúvida nenhuma foram três. O campeonato mundial pelo São Paulo em 1992, que a gente ganhou de 2×0 do Barcelona e eu marquei os dois gols. Foi o primeiro título mundial do time, fazia dez anos que o Brasil não ganhava nada em nível internacional, marcou o momento do futebol brasileiro, a história do São Paulo e a minha. Em 1994, foi a Copa do Mundo, depois de 24 anos sem ganhar, o Brasil voltava a ser campeão e eu ajudei na construção dessa equipe, não joguei a final, mas eu fui capitão do time durante três anos, tive um papel importante na construção desse time. E em 1996, quando o Paris Saint Germain foi campeão de uma Copa Europeia, a primeira vez na história do clube.
Qual a importância do trabalho da Gol de Letra dentro da sociedade?
Raí: É um trabalho que virou um projeto de vida, a grande motivação é querer dar um retorno para o meu país, minha sociedade, de toda a oportunidade que eu tive de ter uma carreira de sucesso. Eu queria de alguma forma que o poder do esporte retornasse para a sociedade, mas também usasse o poder do esporte, de mobilização, para a educação. O Gol de Letra é um jogo de palavras no nome que é o esporte pela educação, então vai além do esporte, usando a atividade esportiva, a educação física, o esporte educacional, entre outras atividades educativas. Meu pai sempre me ensinou e provou, através dos meus irmãos e da vida dele, que o poder de transformação da educação é gigantesco. Para a nossa sociedade ser justa, você tem que oferecer esse tipo de oportunidade de formação de boa qualidade para todos, isso para mim é sinônimo de justiça social. Então, para mim é devolver à sociedade as oportunidades que eu tive e ao mesmo tempo dar oportunidade a muitos jovens que por viverem em regiões pobres não têm. Essa foi a primeira ideia, o Leonardo (ex-jogador) pensava muito parecido comigo e a gente resolveu começar isso juntos.
Qual o sentimento de ver o impacto que a fundação gera na vida de tantos jovens?
Raí: É uma sensação de satisfação, de dever cumprido daquela missão inicial que a gente colocou, mas que também dá uma responsabilidade pelo que conquistamos, de tudo que ainda podemos fazer. Foram diretamente mais de 25 mil crianças e jovens, entre outros centros que a gente está também disseminando a nossa metodologia, por aí vão centenas de milhares de pessoas impactadas, sem contar também as famílias. É uma satisfação ver que a gente conseguiu que um projeto se transformasse em uma referência, modelo, exemplo de algo que pode ser o caminho para uma sociedade mais justa. Depois de 25 anos, eu já tenho mais tempo de ativista do que jogador. Hoje, eu posso dizer, com certeza, que o impacto da Gol de Letra e a sua importância se apoiaram na minha carreira de futebol, mas representa muito mais do que eu construí no esporte.
Você cursou um mestrado em Ciências Políticas na França. Investir nos estudos sempre foi um plano?
Raí: Meus pais sempre valorizaram muito os estudos. Meu pai foi um cara autodidata que depois se formou, virou um exemplo para a gente nesse aspecto, o Sócrates foi jogador e médico, na minha família tinha vários exemplos de pessoas que se transformaram através da educação. Eu sabia que depois da carreira ia investir nisso, é uma maneira também de me manter reinventando, os estudos me mantém reinventando, me rejuvenesce, e dão ideias para novos projetos, ou para melhorar os que já tenho. Uma coisa interessante é que a base do projeto que fiz [No mestrado], é de política pública para uma cidade do Nordeste do Brasil, e ele vai servir para ampliar o impacto da Gol de Letra. A minha experiência na fundação é para um bairro, uma região, vou pegar isso e tentar fazer uma escala de política pública de toda uma cidade, é um estudo que está me enriquecendo intelectualmente, mas que também vai servir para projetos práticos.
Você é dono do Cinesala (cinema de rua na cidade de São Paulo). É mais uma forma de ajudar a impulsionar a cultura no país?
Raí: Sempre usei o cinema, o teatro, a música como inspiração para o próprio futebol, quando eu estava há muito tempo só pensando em futebol, jogando, viajando, sempre precisei disso, sempre acreditei nesse equilíbrio entre essas duas atividades [futebol e arte], sempre tive vontade e fui um apaixonado pela cultura e pela arte. O Cinesala deu vazão de uma maneira concreta a essa minha paixão pelas artes, em especial ao cinema. E também é um cinema muito conceitual. A gente defende a arte e o cinema como algo importante para o cotidiano das pessoas, para interagir, para que as pessoas se encontrem na rua nesse sentido, de ser um lugar com impacto urbanístico e social.
Qual é a sua ligação com Ribeirão Preto?
Raí: Sou uma pessoa admirada em vários lugares do Brasil e do mundo, as pessoas me reconhecem não só pelo futebol, ou questões intelectuais ou sociais, mas também como uma pessoa de calor humano e solidária. Isso eu não tenho dúvidas que veio da minha origem interiorana, a origem dos meus pais tem muito a ver com o interior também. Essa coisa da relação próxima com as pessoas, ter vivido na rua, descalço, no mato, jogando futebol na terra roxa. Essas raízes, nesse interior, sem dúvida nenhuma tendem a uma formação pensada mais nas relações humanas do que no interesse próprio. Acho que o valor maior que tenho é a família, e também esse ambiente onde eu cresci que tem esse lado humano, que vem sem dúvida nenhuma do interior de São Paulo, de Ribeirão Preto.
A Seleção Brasileira está em um momento difícil. Quais os maiores desafios que nosso futebol tem enfrentado?
Raí: Sempre achei e continuo achando que a maior dificuldade do país em relação a outros países foi que o Brasil sempre teve muito talento, mas sempre investiu muito pouco em formação de educadores e treinadores de futebol. O Brasil começou a fazer esse preparo de treinadores já faz uns 20 anos, mas muito depois dos outros países, e está pagando o preço desse atraso. A gente continua tendo talento e grandes jogadores, mas que poderiam ter desenvolvido melhor o seu talento com uma formação de melhor qualidade.
Dos jogadores que surgiram recentemente, quem você acredita que se destaca e pode ser um grande craque mundial?
Raí: O Vini Júnior já é um craque. Tem o Endrick que foi campeão brasileiro em 2023 com o Palmeiras. Sinceramente, eu conheço pouco ele ainda, não vi tantas vezes ele jogar, mas nunca vi um atleta com a idade dele (17 anos) ter tamanha personalidade. Esse aspecto de força mental e confiança me impressionou bastante e eu acho que isso é uma grande característica, fora o talento, o técnico e o físico dele. E tem um jogador que eu gosto muito que é o Rodrygo, que ainda não é tão falado, mas para mim é muito inteligente, além de ser habilidoso e veloz.