Sabe aquele ‘cheirinho’ delicioso de bolo de cenoura, acompanhado de um café coado, feito para adocicar um fim de tarde da infância? Ou aquele macarrão que só um parente amado sabe fazer? Essa memória afável de uma receita e/ou de um ingrediente pode desencadear uma série de sensações, que são despertadas por meio da memória e dos sentimentos relacionados ao que foi vivido. E foi pensando nisso que a Cozinha Afetiva se desdobrou sobre o apelo emocional da culinária e criou uma tendência gastronômica que vai além do paladar.
“Cozinha Afetiva é aquela que remete às memórias gustativas de algum prato ou comida que teve um papel importante na vida de cada um. Por exemplo, para mim, um prato afetivo é a lasanha e o espaguete com molho de tomates, pois remetem ao tempo em que minha mãe acordava cedo para preparar o molho de tomate que cozinhava por horas a fio. A casa era tomada pelo perfume do prato, e a gente ‘chuchava’ o pão na panela de molho antes do almoço, e, depois, toda a família se reunia em volta da mesa para os longos almoços, principalmente nos domingos”, conta o chef Mario Galluzzi, fundador do Cozinha de Afeto, restaurante especializado em Comfort Food.
Para mim, um prato afetivo é a lasanha e o espaguete com molho de tomates, pois remetem ao tempo em que minha mãe acordava cedo para preparar o molho de tomate que cozinhava por horas a fio.
Chef Mario Galluzzi
Caio Soter, chef mineiro premiado como Chef Revelação de Belo Horizonte em 2019, acrescenta: “A Cozinha Afetiva traz esse conforto, né? Traz memória e lembrança e, quando traz lembrança, sempre vem carregada de amor. Então a gente lembra de coisas boas da nossa vida, porque ela é uma cozinha baseada em memórias. Ficamos felizes quando a gente lembra de algo interessante que aconteceu na nossa vida, algum momento marcante, algum sentimento com a pessoa querida… E isso faz a comida ficar até mais gostosa”.
De onde vem a Cozinha Afetiva?
O termo “cozinha afetiva” deriva do conceito de comfort food – comida confortável, em tradução livre -, que existe desde o século XX. Apesar de ser antigo, a sua popularidade só cresceu expressivamente no início dos anos 2000 devido à contemporaneidade. Como a alimentação se tornou uma prática útil e não necessariamente prazerosa, lanches e comidas rápidas substituíram aqueles momentos calorosos de refeição em conjunto. E, na contramão, a Cozinha Afetiva ganhou espaço para fugir dessa mecanização das refeições.
Por ser uma gastronomia que preza por sentimentos e pelo despertar de sensações, unindo essa ideia à elaboração de diferentes pratos tradicionais, seu objetivo vai além de saciar a fome: ela busca promover bem-estar e saudosismo nos indivíduos. Assim, em meio à rotina agitada da contemporaneidade, essa prática foi ganhando espaço e se tornando uma importante e popular tendência gastronômica.
Mas, afinal, o que é Cozinha Afetiva e “comfort food”?
Segundo o chef Galluzzi, a “comfort food é aquela comida reconfortante, aquela comida que lembra um abraço ou um carinho. A Cozinha Afetiva, portanto, é um conjunto de comidas afetivas [esses pratos tradicionais] que trazem ou remetem a sensações de saudosismo”.
Para o profissional, o primeiro alimento que as pessoas podem ligar ao saudosismo e ter essa relação mais afetiva é “aquele preparado pela mãe”, independentemente de um ingrediente ou receita específica. Mas ele cita a canja de galinha como exemplo por seu “poder reconfortante” em caso de enfermidades, lembrando que as mães costumam preparar esse prato para melhorar o estado de saúde.
Mario Galluzzi exemplifica, ainda, alguns pratos dessa tendência gastronômica no Brasil: “Culinária Afetiva pode ser culinária italiana, culinária portuguesa, etc., aquelas que tem mais cara de casa e menos cara de comidas ultrarefinadas. Comida Afetiva pode ser canja de galinha, brigadeiro, lasanha, espaguete com almôndegas, arroz com feijão, purê de batata, bolo de chocolate, bolo de cenoura e por aí vai.”
Lembrando que, além do conceito de emoção, saudosismo e nostalgia, que é o mais utilizado e relacionado à Cozinha Afetiva, também é possível garantir outras sensações nos indivíduos com essa tendência culinária, incluindo o conforto físico por meio de refeições saudáveis e/ou que geram disposição.
Cozinha Afetiva no pós-pandemia
Em 2020, quando o mundo precisou se reinventar devido à Covid-19, a Cozinha Afetiva ganhou ainda mais força, incluindo no Brasil. O chef Galluzzi ressalta que os brasileiros são uma sociedade muito saudosista, e essa realidade foi potencializada pela nostalgia que afetou a população por conta da pandemia.
“Penso que a pandemia potencializou essa tendência, porque as pessoas começaram a cozinhar mais, e penso que, quando começamos a cozinhar, buscamos fazer aquilo que sentimos saudades. Pensamos: ‘Ah, vou fazer um estrogonofe parecido com o que minha vó que faleceu fazia’. Então [nesse período de pandemia] as pessoas começaram a correr atrás disso e a executar essa cozinha efetiva. E as pessoas precisavam de abraço também. Todo mundo ficou muito carente dentro de casa, e a comida também abraçou”, fala Caio Soter.
“Os nossos pratos são criados por mães e avós para nos alimentar. Pratos tradicionais foram inventados por parentes, feitos de suas casas, e, então, na própria concepção deles, eles já estavam carregados de afeto. Por isso, penso que a Cozinha Afetiva é muito natural do brasileiro”
Chef Caio Soter
“As pessoas começaram a buscar receitas de família para preparar em suas casas”, pontua Galluzzi. No Brasil, esse cenário foi muito forte e significativo, visto que a cultura gastronômica brasileira está relacionada com o afeto e tem um forte apelo com refeições e alimentos que remetem a determinadas sensações.
Caio Soter reflete sobre o modo que a “cultura gastronômica brasileira está relacionada com o afeto”. “Os nossos pratos são criados por mães e avós para nos alimentar. Pratos tradicionais foram inventados por parentes, feitos de suas casas, e, então, na própria concepção deles, eles já estavam carregados de afeto. Por isso, penso que a Cozinha Afetiva é muito natural do brasileiro”, conclui.